Sobre línguas e tias ibéricas

Achamos que as línguas nos separam, mas pensemos melhor. Pensemos na forma como as palavras podem separar-nos ainda mais dentro de cada língua.

Uso um exemplo recente: as declarações de Isabel Jonet e a fúria que provocaram pela facebooklândia fora. Não comento as ditas declarações. Mas reparem como muita da fúria radica nos mundos diferentes onde vivem Jonet e os seus acérrimos críticos: há quem se enerve com a "caridadezinha", Jonet não gosta da frieza da "solidariedade", uma coisa é caridade, outra os direitos dos cidadãos, e por aí fora. Estamos a falar de linguagens usadas em mundos diferentes. No mundo das senhoras bem-intencionadas que vão beber as suas ideias a São Paulo, a caridade é um conceito central, bíblico, divido, equivalente ao Amor, parte central da acção católica no mundo. No mundo dos empenhados politicamente numa mudança radical de sistema, a caridade é uma acção paliativa de má consciência burguesa, que só prejudica a verdadeira e humana mudança. Mundos diferentes, linguagens diferentes.

Não julguem que com isto quero dizer que é tudo igual e têm todos razão! Longe de mim. Há quem passe fome, e esteja pouco preocupado com estas birras semânticas. Adiante. (Não sem antes dizer que cada um destes mundos é bem mais completo, coerente e genuíno do que a imagem que o "outro lado" tem dele faz crer.)

Agora, o que me interessa para a discussão linguística: uma senhora (uma "tia", se quiserem) espanhola, empenhada na sua paróquia, que leia as palavras de Jonet, está mais distante de Jonet do que os portugueses indignados com as suas palavras? Não. Estará a falar a mesma língua, em muitos sentidos. As duas senhoras dialogarão com facilidade. Já o diálogo entre Jonet e os seus críticos portugueses é um diálogo de surdos, por mais comum que seja a língua.

As línguas distanciam, um pouco. Mas essa distância não se compara com as distâncias que cada país, cada cidade, cada grupo tem dentro de si. É por isso que a tradução está longe de ser impossível -- mas levar Jonet a ler o blogue Arrastão é uma tarefa digna dos Tom Cruises desta vida.

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