Dizer bem pelas costas


Não é fácil dizer bem seja do que for. Porquê? Talvez porque dizer mal nos coloca numa posição mais agradável, superior, inteligente (“tão sarcástico que eu sou, já viram?”). Dizer bem pode parecer ingenuidade ou algo ainda pior. Dizer mal faz-nos rir (dos outros), permite acusar sem ser acusado, faz-nos sentir parte do restrito clube dos lúcidos e inteligentes. No fundo, temos medo de dizer bem, porque dizer bem parece um pouco parolo – e, vamos lá admitir, para muitas pessoas não há pecado maior do que ser parolo. Roubar e matar pode ter perdão, a parolice é que não.

Ninguém está acima deste tipo de maldade. Dizer mal pelas costas é um pecado em que todos, mais tarde ou mais cedo, caímos – é um prazer mesquinho, mas um prazer. É possível, até, que cumpra alguma obscura função na evolução da humanidade. Mas não nos enganemos: dizer mal pelas costas mostra mais de quem o faz do que de quem é falado. Não perceber isto é estupidez, típica das pessoas que se chocam constantemente com a estupidez dos outros, das pessoas que se especializam com gosto na arte de deitar abaixo, enquanto se dizem chocadas com o mundo.

É importante ressalvar que criticar, dar conselhos e tentar mudar o que está mal é um acto de coragem e, muitas vezes, de amizade – desde que, claro, o saibamos fazer junto da própria pessoa que errou. Mas mesmo aqueles que têm a coragem de dizer o que pensam pela frente caem, por vezes, num erro: julgam que criticar é sempre bom, que perante seja o que for que os outros façam, a atitude correcta é perceber o que está mal. Com esta nossa mania de olhar de alto para baixo, acabamos por perder, devagar, o respeito pela liberdade dos outros – e perdemos, também, a autoridade para criticar quando é mesmo necessário. É uma fraqueza muito humana, esta de acreditar que a humanidade está perdida e a culpa é dos outros. Afinal, ao contrário do que pensam os pobres iludidos que gostam de ver mal em tudo, o que está bem é muito mais do que pensamos – e só não percebem isto porque acreditam que são ilhas de perfeição num mundo mau, o que os leva a exigir tudo dos outros e a perdoar tudo a si próprios.

Todos caímos neste erro, mais tarde ou mais cedo. Ninguém está imune. O que fazer perante isto? Podemos tentar melhorar. Lentamente. Sem ilusões. Podemos começar a dar o benefício da dúvida, a perdoar, a esquecer. Podemos aprender que, normalmente, vemos a nossa vida com óculos cor-de-rosa e a vida dos outros através de lentes muito escuras – afinal, mesmo quando a vida dos outros nos parece boa, arranjamos maneiras de a desvalorizar (“aquilo não deve ter sido do trabalho”; “o mundo está errado para um gajo daqueles ter uma vida daquelas”; “é boa pessoa, mas fala axim”; “sim, é simpático, mas é gordo…”). Sem perceber, ficamos moídos por dentro, tudo pelo prazer perverso de mexer na porcaria que inventamos, de nos regozijarmos com o que parece estar mal – depois, sem perceber, tornamo-nos bem piores do que aquilo que criticamos.

Uma proposta radical: olhemos, por uma vez, para o que os outros fazem bem. Experimentem. Ignorem o que acham mal, por momentos. Deixem de lado a indignação perante a forma absurda como os outros vivem a vida deles. Concentrem-se, por uma vez, na decência da grande maioria das vidas. Depois, digam bem pelas costas. Não é assim tão difícil e até nos dá tempo para corrigir o que nós próprios fazemos mal, pois não perdemos tanto tempo e imaginação a tentar perceber as mil e uma formas como as vidas dos outros estão erradas.

Talvez seja impraticável. Mas é o que me apetece pedir. Mais do que exigir que o mundo e os outros se adaptem de imediato ao que achamos ser, no capricho do momento, a melhor forma de viver, talvez fosse boa ideia sentir o subtil prazer de elogiar pelas costas. Só para variar um pouco.

Ninguém tem uma vida perfeita – mas, depois de visitar a casa de alguém, podemos experimentar falar menos dos quadros que estavam um pouco tortos e mais da simpatia de quem nos recebeu…

Publicado em Notícias do Parque

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