O medo dos outros

Quando tinha uns 15 ou 16 anos, visitei aquele edifício em forma de periscópio que está no extremo sul do Parque das Nações. Lembro-me de ver uma maquete daquilo que seria a Expo dali a poucos anos. Era uma espécie de cidade feita de gesso, fechada em vidro, um cenário vazio. Depois, olhei para o enorme terreno onde nasceria aquela cidade. Quinze anos depois, temos aqui uma cidade, certamente muito diferente do que qualquer pessoa imaginaria. Ouvindo alguns comentários, algumas pessoas prefeririam que a cidade tivesse ficado exactamente igual à maquete – perfeitinha e, de preferência, vazia.

Para alguns, a única cidade aceitável seria uma cidade sem os outros – ou então uma cidade povoada por cópias exactas de si mesmo. Há pessoas obcecadas pela forma como os outros se esforçam todo o santo dia por irritá-las. Há quem se irrite com o barulho, os hábitos, as manias, a estupidez e, em geral, a vida dos outros. Desejam ardentemente viver numa Lisboa perfeita, que siga sem falhas um plano qualquer. Estão tão obcecados que ensopam os dias de impaciências, arrogâncias e rosnadelas.

Ora, a verdade é que a soma de tudo o que fazemos na cidade nem sempre é agradável: há demasiados carros, Baixa vazia, centros comerciais a abarrotar e por aí fora. Não seria tão bom que os outros fizessem aquilo que temos a certeza de que é correcto? Talvez, mas por mim prefiro uma cidade imperfeita a uma cidade que se arrisque a ser uma maquete com pequenos bonecos a fazer tudo de forma certinha. Uma cidade faz-se com as pessoas que cá vivem e é sempre um compromisso. A cidade que criamos em conjunto nunca é a cidade que determinada pessoa desejaria. Podemos ter um pouco de humildade: sim, é verdade que “o inferno são os outros” – mas outras vezes o inferno dos outros somos nós.

Isto tudo para dizer que o medo dos outros não nos deve impedir de aproveitar a cidade. Proponho um pequeno truque para quem já está pelos cabelos com as outras pessoas. Finja que é turista. Vá até Alcochete e volte pela ponte. Faça de conta que não conhece Lisboa. Visite os sítios mais óbvios e perca-se em ruas desconhecidas. Peça informações. Faça perguntas. Fale com os nativos. São mais simpáticos do que se diz.

Em resumo: como acontece quando viajamos, temos de perder o medo dos outros – podem ser diferentes, mas eles lá sabem. Estamos de passagem e não temos assim tanto tempo a perder em buzinadelas só porque alguém não anda à velocidade certa ou em desprezos sibilinos porque nem todos são como nós.

Vem aí o Verão, vêm aí muitas oportunidades para nos encontrarmos. Há arraiais, corridas, feiras, concertos, festas e tudo o mais. Aproveitemos, por momentos, a cidade que temos, as ruas cheias, a sombra das árvores, as noites de calor e as conversas com os outros. Bom Verão – vemo-nos por aí!

Publicado em Notícias do Parque
Maio de 2011

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