Gosto / Não Gosto

Vamos imaginar que alguém vai a uma cidade e passa, em primeiro lugar, por uma zona especialmente feia. Vamos ainda supor que essa pessoa é particularmente dada a certezas muito fortes e rápidas. A partir desse primeiro contacto, tudo o resto vai começar a ser visto pelo prisma dessas imagens iniciais. A certeza de que aquela cidade é feia será o eixo a partir do qual tudo é avaliado. A partir daí o que for bonito na cidade será excepção e o que for feio será a confirmação da regra, independentemente da proporção entre "zonas feias" e "zonas bonitas". Aliás, zonas que, noutro momento ou disposição, seriam consideradas pela mesma pessoa como bonitas passam a ser interpretadas à pior luz possível.

Há também o caso em que uma pessoa vai de pé atrás para uma determinada cidade. A visita à cidade irá sempre confirmar aquilo que "sabia" previamente. A certeza "a cidade X é feia" é uma "ideia de atracção selectiva" (esta inventei eu agora), ou seja, uma ideia que atrai exemplos e ideias semelhantes, mas que repele tudo o que for exemplos contrários. Há quem lhes chame "preconceitos", mas a palavra "preconceito" tem uma carga muito própria. (Embora não me pareça, assim de repente, que a expressão "ideia de atracção selectiva" vá ganhar muita aceitação...)

Como nós não somos máquinas perfeitas que analisam tudo de forma imparcial e ponderada, aquilo que vemos em primeiro lugar (ou, às vezes, em último) tem um peso desmedido na avaliação que fazemos de tudo o resto. As primeiras impressões contam mesmo -- e quem perde somos nós.

Assim, um viajante com tendência para as certezas rápidas vem a Paris (um mero exemplo), vê uma zona um pouco suja e, a partir daí, tudo o resto é irrelevante ou confirmação daquilo que ficou a saber. Regressando à sua terra, irá defender acerrimamente o seu ponto de vista, agitando o papão "mas eu fui lá!". Mesmo que alguém tenha vivido em Paris durante anos ou estudado a cidade profundamente, se a opinião não for a mesma, o que interessa é que "eu fui lá, eu sei que aquilo é sujo (e feio e porco e mau)". Mesmo que alguém apresente um ou outro dado objectivo sobre a limpeza duma cidade (que os há), nada interessa. A opinião "Paris é suja" será sempre uma verdade absoluta para essa pessoa.

Nada a dizer. Cada um sabe de si e não estamos a falar de ideias que possam ter influência na vida dos outros. No entanto, essa pessoa ficou a perder. A partir daqui, esta pessoa "fechou-se" a Paris, por assim dizer. Bloqueou. Não tentará visitar Paris outra vez -- e se o fizer será uma perda de tempo. Mesmo realidades que pouco têm a ver com Paris, se estiverem associadas à cidade, ficarão, por assim dizer, conspurcadas na cabeça dessa pessoa.

A alternativa? Ninguém vai passar a ser muito racional e ponderado nestas coisas do gosto. Mas deixarmo-nos de certezas, afirmações muito assertivas e, sei lá, passarmos a visitar uma cidade pela segunda vez como se fosse a primeira podem ajudar-nos a "desbloquear" um pouco o nosso pensamento. Tudo o que pudesse evitar as certezas tão absolutas quanto pouco objectivas e racionais ajudar-nos-á a viver melhor, a conhecer mais coisas e a esquecer essa necessidade de condenar sem apelo e agravo uma cidade (ou qualquer outra coisa) só para mostrar que somos exigentes e não vamos na cantiga do que os outros dizem. Aliás, a necessidade de dizer "gosto da cidade X", "não gosto da cidade X" pode ser refreada. Podemos conhecer, apreciar, viver um pouco uma cidade sem ter de a colocar sem falta na coluna "Gosto" ou na coluna "Não gosto".

Tudo isto para dizer que, por vezes, "ir lá" não é garantia de que passámos a conhecer melhor um sítio ou país ou que temos uma autoridade especial para mandar postas de pescada. Aliás, pela forma como cristaliza certas certezas, uma visita a uma cidade pode ser contraproducente, se a pessoa não tiver o espírito aberto necessário ao verdadeiro viajante. Este espírito aberto deve recusar certezas absolutas, mesmo que sejam baseadas na experiência pessoal.

Enfim, quando forem a uma cidade, descontraiam e não queiram "gostar" ou "desgostar" da cidade à força toda. Nem tudo é um post do Facebook (que, aliás, nem sequer tem o tão propalado "dislike").

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