A continuação da viagem

Quando viajamos, parece que fazemos um parênteses na nossa vida e, de repente, tudo parece mais nítido. Saímos dos problemas dos dias, das conversas iguais, das notícias do défice, das tensões do trabalho, do café, do trânsito da nossa cidade. Depois, podemos enfiar-nos no trânsito duma qualquer capital estrangeira e discutir o dia todo com os nossos companheiros de viagem, mas é completamente diferente. (A sério, é mesmo. Não estou a ser irónico.) Enfim, o mundo tem outra cor e parece novo. No fundo, é como se fôssemos crianças, mas com máquinas fotográficas e computadores para postar as recordações que vamos coleccionando para enfiar nos servidores do Facebook.

Nas viagens em grupo, cria-se também uma espécie de sociedade à parte. Quando viajo com a minha família, estou com pessoas que vejo muitas vezes. No entanto, há discussões específicas, há piadas repetidas que depois desaparecem e são recordadas como uma cidade que visitámos, há aborrecimentos que não têm lógica na nossa terra, há rotinas próprias que se descartam quando regressamos.

Quando voltamos, tentamos prolongar um pouco esses dias. Contamos repetidamente aquilo que aconteceu, por vezes tantas vezes que acabamos por nos lembrar, mais tarde, não do que visitámos, mas da forma como contámos aos outros o que visitámos. Será que gostamos de ouvir contar as viagens dos outros? Depende muito. Por vezes, as pessoas voltam com um “mas afinal aquilo é giro e tu disseste-me que não” (ou o contrário) ou contam tudo com aquele ar “enquanto não fores lá não podes dizer que já viveste (e se fores lá e não gostares, acaba-se tudo aqui)”. Enfim, todos fazemos isto, não é por mal. Ao contar, tentamos oferecer um pouco daquilo que vimos, mas acabamos por cristalizar as opiniões, acabamos por forçar as imagens mais marcantes e vamo-nos esquecendo daqueles pormenores estranhos ou apenas curiosos, de todas as impressões que, na viagem, nos caem em cima. Com os dias a passar e o cansaço dos dias normais a pesar-nos nos ombros, quando começamos a contar uma certa viagem pela trigésima vez, já só dizemos: “é pá, aquilo é giro, vai ao Facebook ver as fotos”.

Não é preciso falar com um japonês para percebermos que a vontade louca de fotografar tudo o que nos passa pela frente é outra forma de prolongar a viagem – quando voltamos, mostramos várias vezes as fotos – que são sempre muito mais do que 24, para mal da Kodak e da nossa paciência. Acredito que os amigos só aceitam submeter-se a tal pena porque esperam retribuição quando eles próprios voltarem de alguma viagem. Afinal, para quem não foi, ver fotografias de viagem é como ver postais com caras conhecidas: com o Photoshop também se consegue. Mas todos queremos ter desculpa para ver de novo os sítios por onde passámos e por isso vemos as dos outros e tentamos achar interessante. (O Facebook melhorou um pouco as coisas, com a hipótese de não ligar ou então de comentar e participar um pouco na coisa.)

Tenho uma outra forma de continuar uma viagem que talvez seja um pouco mais pessoal: continuo a ler os livros que estava a ler ou leio os livros que comprei por lá... Outras vezes, releio partes que li durante a viagem. Acreditem: não há melhor forma de recuperar o sabor duma viagem do que voltar a uma página que lemos distraidamente num sítio qualquer. O sabor do exacto lugar onde estávamos volta com uma força que parece absurda, tendo em conta a pouca atenção que lhe estávamos a dar enquanto líamos. Os livros, além dos bilhetes de metro, areia e recibos em geral, também têm lá dentro memórias. É estranhíssimo, admito. (Também acontece por vezes estarmos a ler despreocupadamente e um qualquer local nos cair em cima sem avisar.)

Tudo isto para dizer que gostava agora de experimentar uma nova forma de continuar a uma viagem terminada. Vou contar-vos um pouco da viagem que fiz com a minha família a semana passada. Vou contar à medida que tiver tempo. Se calhar, vai ser tão chato como as tais fotografias impingidas aos amigos. Mas, pelo menos, sempre me vou distraindo e só lê quem quer.

Muito bem. Tudo começou às seis da manhã dum sábado de Abril. Entrámos os seis na carrinha que o meu pai arranjou há uns tempos para poder visitar de carro o meu irmão Diogo, que se mudou para Inglaterra há dois anos...

Ora, tenho de ir jantar. Continuo quando tiver tempo.

Comentários