Como é possível não gostar de Veneza?

Fui a Veneza pela primeira vez há duas semanas. Antes disso, tinha duas ideias distintas sobre a cidade. Por um lado, muitas pessoas que já lá tinham ido diziam-me que Veneza cheira mal, é suja, está sobrevalorizada, que só é bonita de longe e, mesmo assim, vê-se a léguas que está a cair. Por outro lado, tinha todos os livros, os quadros, os filmes, todas essas Venezas imaginadas em que é aquela a cidade mais bela do mundo, a cidade das gôndolas, das serenatas, das máscaras, de Casanova, da Morte em Veneza de Visconti. É fácil visitar Veneza sem nunca lá ter ido.


Assim, para mim, que nunca lá tinha ido, Veneza tinha duas máscaras, era não uma mas duas cidades. Desconfiava que o peso das expectativas era demasiado grande para uma cidade tão frágil e que, provavelmente, havia mesmo duas cidades: a cidade real, que iria visitar, e a cidade que tinha sido imaginada ao longo dos séculos e que tinha pouco a ver com a Veneza que está à beira do Adriático. Achava provável que muitos dissessem bem só pela inércia de dizer bem, enquanto uns quantos iam lá e tinham a coragem de dizer a verdade — a cidade era como o rei que vai nu, ou seja, era feia, ou seja, era suja e cheirava mal, o grande pecado das cidades. A Zélia e eu chegámos a Veneza com as expectativas muito baixas, o que não deixa de ser curioso, tendo em conta que estávamos a chegar a Veneza e não a uma qualquer cidade desconhecida.

Assim, conseguimos a proeza de ficar surpreendidos com uma das cidades mais famosas do mundo. Primeiro, há o espanto de crianças que é ver uma cidade feita em cima de água. Sempre pensei que era exagero, que só haveria um ou outro canal, que a cidade não eramesmo feita em cima de água. Mas é. É uma cidade deliciosamente pouco prática e deliciosamente imperfeita. Por amor de Deus: está feita sobre ilhas pouco sólidas! As torres estão todas inclinadas! Tem ruelas negras, uma basílica que parece um sonho duma noite de Carnaval e uma praça mal desenhada que se afunda de vez em quando. Mas tudo aquilo é belo, com aquela beleza estranha que por vezes aparece nas coisas feitas sem plano e da maneira mais difícil. É o oposto da beleza brilhante da arquitectura de metal ou das cidades feitas de raiz e que têm tudo o que uma cidade deve ter (incluindo ruas feitas de alcatrão, que sempre dá mais jeito do que água). Em Veneza, temos poucas árvores, poucos parques, poucas avenidas, poucos dos chamados equipamentos urbanos. Temos água, pontes, prédios, cores e muita gente. E ainda histórias, memórias e tudo o resto que faz as cidades. É como se ali estivesse estado uma cidade e agora restasse apenas o que a imaginação fez dela, uma espécie de cidade irreal, destilada do que se sonha, uma máscara que se tira — mas que, de facto, está ali, existe, e que pisamos com a sensação de termos entrado num filme ou num sonho. Andar em Veneza, por ser feita em cima de água e por ter sido tantas vezes descrita, pintada, filmada e imaginada, é vermos a imaginação materializada sob os nossos pés. Ora, mesmo assim, foi a única cidade onde fui em que senti não a ter imaginado como deve ser antes de lá pôr os pés. Quando fui a Londres pela primeira vez, senti como se fosse um regresso a uma cidade que já conhecia. Quando cheguei a Veneza, pensei que o melhor é deitar fora tudo o que me tinham dito. A cidade imagina-se a si própria. Estou a contradizer-me ou a dizer coisas sem sentido? É normal, estou a falar de Veneza. Ali, as descrições perdem todo o sentido.

Veneza surpreendeu-nos tanto que se tornou um novo mistério o facto de tanta gente fazer questão de dizer que não gosta daquela cidade em particular. Mas porquê? Como é possível que tanta gente me diga que não gosta de Veneza? Que aquilo, no fundo, é feio e que a tal «beleza» não passa dum mito? Ora, é fácil de perceber que é uma confirmação de que somos todos muito diferentes (e que somos presas fáceis das expectativas). É mais uma prova de que chegamos às coisas com muita bagagem, com tudo o que vem detrás. Reparem bem no que digo, não se trata de dizer isto só por dizer: quando alguém chega a Veneza, aquilo que vê, a que fica atento, é definido pelo que esperava, pelo que normalmente repara, até pela luz exacta que naquele momento há sobre a lagoa. Há muito de acaso, de preconceito, de memória mais ou menos certa naquilo que dizemos sobre uma cidade — ou, para dizer a verdade, sobre qualquer outra coisa. Por isso, é possível e normal chegar lá e não gostar de nada daquilo. As pessoas são diferentes.

Ora, o que pode parecer óbvio para todos nós — as pessoas são diferentes — é, na realidade, algo que não costumamos aceitar com tanta facilidade. Quando os outros não concordam connosco, achamos sempre que «não estão a ver bem» ou, pior, que padecem de algum defeito irremediável. Mas a última coisa que tentamos é pormo-nos nos pés dos outros e tentar, por breves momentos, ver as coisas como outra pessoa as vê. É um exercício curioso e útil, por várias razões. Por exemplo, fazendo algum esforço, consigo perceber como é possível não gostar de Veneza. Posso sempre dizer que Veneza é uma beleza conservada em formol, quase um cadáver embalsamado ou, pelo menos, uma cidade frágil como um aristocrata maquilhado, decrépito, com um humor corrosivo e um riso absurdo. Também pode ser um cenário que se mantém, como uma carcaça, só para turista ver. Às vezes, não é muito difícil perceber os outros, é quase como ver duas faces onde antes víamos uma jarra. Ou de ver um quadro onde outros vêem rabiscos. Ou de ver beleza em Veneza ou apenas os restos duma cidade a afundar. Consigo perceber tudo isto.

Ora, se ver as coisas como os outros as vêem é curioso e importante, a certa altura, tenho de voltar a ser eu, mesmo que um pouco alterado por essa viagem ao mundo dos outros (é para isso que serve o exercício). Tenho as minhas leituras, as minhas ideias, as minhas cidades, as minhas pessoas, as minhas histórias e, por fim, sei que, para mim, Veneza é de facto linda e sinto prazer em percorrer-lhe as ruas de mãos dadas com a Zélia, entre táxis aquáticos, pontes de pedra, numa cidade feita de ilhas, água, espanto, carnaval, máscaras, um sorriso irónico, um gosto tremendo pela vida e por aquilo que é estranho e sai de si e cria cidades em cima de água onde os pombos têm de viver no susto de a praça onde pousam se afundar por momentos e onde as pessoas andam, pelo menos na imaginação, com máscaras na cara ou então disfarçadas de turistas. É uma cidade incorrecta, ilógica, um baile de máscaras feito de pedra, uma cidade que se desfaz em símbolos e palavras só dela — as duas colunas, o leão, a bandeira desfeita em fatias, a praça, os campos, os vaporettos, as gôndolas, o Grande Canal e por aí fora... Haverá outra cidade com tanto que a distingue? E haverá outra cidade que quase nos obriga a imaginar, a criar histórias naquelas ruas? Mal tinha saído de lá, já pensava, embalado pelo Adriático, em sinos a ecoar na água dum amanhecer vazio, com pombos a esvoaçaram sobre uma praça de São Marcos inundada pela acqua alta e candeeiros como ancoradouros, à luz ainda cinzenta da manhã. (O que as viagens fazem a uma pessoa...)

Quando partimos de Veneza, no sábado em que começámos a viagem, vimos as torres inclinadas, o Grande Canal, a Praça de São Marcos, tudo ao longe. O navio partiu pelo Adriático fora e fiquei com água na boca: queria voltar depressa. O resto da viagem foi quase apenas um regresso a Veneza, mas foi um regresso cheio de outras paragens.

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