Óbvio!

Nas discussões políticas, sociais e culturais, não são as questões particulares de cada conversa que mais nos separam, mas antes aquilo que tomamos como óbvio. Para um bloquista, é óbvio que um católico é um pouco medieval. Para um católico, é óbvio que os bloquistas sofrem de arrogância intelectual extrema. Para um comunista, é óbvio que a globalização aumenta as desigualdades e é um exemplo de exploração do Homem pelo Homem. Para um liberal, é óbvio que a abertura dos mercados aumenta a riqueza dos países e é a resposta para os países em vias de desenvolvimento. Para um literato, é óbvio que a ciência se arroga a capacidade de explicar objectivamente o mundo e o universo, quando, na realidade, somos feitos de linguagem. Para um cientista, é óbvio que os literatos são uns parasitas improdutivos que não vêem o desenvolvimento provocado pela ciência nem têm as mínimas bases científicas de compreensão do mundo. Os exemplos multiplicam-se até ao absurdo.

Todos damos por tão adquiridas as nossas próprias obviedades que não as discutimos, não as expressamos, temos medo de as tocar. À superfície, elas aparecem na forma de tiques de linguagem, de certas referências oblíquas, raramente ditas. Afinal, são tudo coisas óbvias. Os que não partilham as nossas obviedades são estúpidos, canalhas, têm interesses escondidos ou são completamente irrelevantes. Quando se trata de obviedades, os argumentos são quase sempre ad hominem. Os liberais sabem que a globalização só tem vantagens. Porquê sequer dizê-las? Um bloquista sabe que a globalização é a causa de todos os males do mundo actual. Porquê discuti-la? E todos sabem que os outros são cúmplices dos males do mundo.

Assim, o mais importante fica por debater. Com algumas excepções que confirmam tão bem a regra, todos vamos saneando com preguiça de diálogo e confronto de ideias o grupo de amigos ou a “tertúlia” privada. Com o passar dos anos, acabamos por falar com sinceridade apenas com quem concorda connosco, com quem partilha as nossas obviedades privadas. Como música de fundo, sempre o chavão “nós é que sabemos”.

Pessoalmente, tenho as minhas próprias ideias, mas defendo que a urgência, neste mundo de linguagens cada vez mais estanques, é cantar canções de Igreja nas reuniões do BE, defender a homossexualidade nos grupos de jovens católicos, analisar as vantagens da globalização na festa do Avante, discutir entre liberais as propostas do Fórum de Porto Alegre, lançar o termo pós-modernismo numa lan-party de engenheiros informáticos, divulgar numa tertúlia literária as novas descobertas no campo da Inteligência Artificial. Nada disto é, repare-se, provocação gratuita — serve para trazer ao de cima o que em cada local se dá por encerrado. Porque, se não, vamos continuar todos a rodar à volta de eixos incomunicantes. No final, talvez continuemos todos com as mesmas ideias, mas pelo menos falámos e vimos que, do outro lado, também há inteligência, humor, tolerância, ideias e vidas. Pessoas. Não apenas estúpidos, canalhas, interesseiros, arrogantes. Ao mesmo tempo, a formação cultural de cada um só vai beneficiar com a visão mais alargada que a quebra dos “códigos linguísticos” privados pode trazer.

O combate a todas as ortodoxias faz-se, para além do humor, como se diz aqui, através da justaposição de mundos culturais e da quebra de barreiras sem que isso signifique diluição de ideias ou niilismo arrogante. O difícil está aí: ter ideias, pensar e actuar sem nos limitarmos a rondar os mesmos cafés, os mesmos blogs, os mesmos grupos de amigos, os mesmos insultos e as mesmas obviedades.

Que a rede “blogoesférica” seja o lugar ideal para tudo isto parece-me óbvio. Sê-lo-á? Vamos desperdiçar a oportunidade?

Comentários

Anónimo disse…
Bem observado. É bem verdade: para cada um de nós, a culpa dos Males e dos Problemas do Mundo é sempre do(s) Outro(s), nunca nossa.

Concordo plenamente quando afirmas que é preciso uma colaboração activa das áreas mais improváveis e das pessoas mais improváveis. Porém, pensar que isso é possível nos dias que correm é talvez ser demasiado optimista... Até diria que é ser demasiado idealista. Mas se virmos bem, sempre foram os idealistas que mudaram o mundo, para o Bem ou para o Mal. Foram eles que ficaram na História. Não a "carneirada" que segue ideias pré-concebidas, preconceitos, formas de pensar em segunda mão.

Às vezes penso que o Kafka foi quem melhor explicou o Mundo ao escrever O Processo, um livro que é basicamente uma declaração de incompreensão. Talvez a única forma de explicar este Mundo fascinante é admitir que não o conseguimos explicar.

Será que, depois de milhares de anos de história registada, o Homem não deveria ter capacidade para se pensar, para se explicar, e para redefinir como ser social? Para aceitar a diferença e harmonizar a existência social?

A resposta é "Sim, devia", mas a realidade é "Não, não tem". Mas quem sabe se um dia haverá mais alguém a pensar como tu, Marco. Pela minha parte, já me deste que pensar com esta questão do "eu sei mais e sou melhor do que o Outro, porque sim".