O Livro

"O nosso primeiro inimigo não é Bin Laden nem Al Zarqawi, mas o Corão, o livro que os intoxicou."

—Oriana Fallaci (apud Visão n.º 653)

A frase de Oriana Fallaci parece corajosa e politicamente incorrecta, daquelas frases que todos queríamos ouvir, mas ninguém tinha coragem de dizer. Parece. Na realidade, é aquilo que os espanhóis chamam de tontería.

Em primeiro lugar, não é descabido culpabilizar um livro por alguma coisa. Os livros, por vezes, são maus. O argumento de que "um livro não é mau, mas sim as leituras que se fazem dele" não colhe quando pensamos, por exemplo, em Mein Kampf ou noutros que tais. Há livros maus. Mas o Corão não é um deles.

Se não, vejamos. Existem muitos disparates (como lhes chamaríamos nós) no Corão. Mas muitos cristãos fervorosos ficariam admirados com o número de disparates que encontrariam na Bíblia. São livros escritos num ambiente de elevada religiosidade há muitos séculos. É claro que aos olhos de hoje parecem estranhos, radicais, sanguinários, por vezes primitivos. Também a Bíblia foi desculpa para muitas atrocidades ao longo dos séculos. Com a Bíblia na mão atacaram-se populações e cidades com a mesma ferocidade com que hoje os terroristas atacam o Ocidente. Mas todos sabemos — apesar de haver muitos ocidentais que têm mais desprezo pela Bíblia do que pelo Corão, porque é giro e exótico — que a Bíblia é importante na vida de muitas pessoas e foi a base de uma certa ideia de comunidade a que muito deve o modo de vida europeu, ocidental e mundial (inclusivamente islâmico). Ora, o Corão também desempenha ou desempenhou esse papel agregador em muitas comunidades e, para muitas pessoas, é um guia de vida como muitos outros. E serviu também como base para uma Civilização que, a determinada altura, permitiu salvar os tesouros da cultura europeia (lembremo-nos, por exemplo, do Al-Andaluz).

Claro que — e Oriana Fallaci sabe-o — o Corão tem um lugar especial no Islão. O Corão não é um livro como a Bíblia (que os cristão acreditam ter sido inspirada por Deus) . O Corão, segundo o Islão, foi escrito pelo próprio Deus e existe desde o princípio do tempo. O Corão ocupa o mesmo lugar no Islão que ocupa Jesus no Cristianismo. Por isso, Oriana Fallaci ataca directamente o coração do Islão. Diz que o inimigo número um do Ocidente não é este ou aquele terrorista, mas o Islão inteiro. Cada um dos muçulmanos.

Há que dizer que a jornalista é bastante clara. Simples. Directa. Violenta. Sexy. Fundamentalista. A visão de Oriana Fallaci é uma visão de quem não compreende outras formas de estar no mundo. De quem sabe que tem razão e por isso grita-a bem alto para que todos a possam partilhar. De quem não tem medo. Exactamente as razões porque Bin Laden é tão apelativo para tantos muçulmanos. Se Oriana Fallaci vivesse durante a Idade Média (como vive Bin Laden e muitos países muçulmanos), se tivesse dinheiro (como tem Bin Laden) e influência (como tem Bin Laden) seria muito menos inócua do que é. Felizmente, vive no século XXI e no Ocidente.

Digo "felizmente" porque, ao contrário do que pensaria Oriana Fallaci se me tivesse lido até este ponto, não sofro do desprezo por tudo o que é ocidental, comum entre muitos intelectuais desta civilização. Sei que o Ocidente, ao inculcar um respeito mínimo pelo que é diferente nos seus cidadãos, ao retirar-lhes muita da vontade de combater contra o que não gostam, ao dar-lhes uma qualidade de vida que retira a muitos a vontade de dar a vida por entidades mais altas (a Nação, Deus, etc.), permite desenvolver sociedades menos violentas e menos fundamentalistas que muitas das sociedades islâmicas. Isto não é uma diferença essencial das religiões ou das culturas, mas uma questão de ritmo de desenvolvimento. Digo-o sem pudor: o Ocidente é melhor (neste momento da História). E é melhor porque relativiza as coisas. Porque permite a coexistência de formas contraditórias de ver o mundo. Porque permite até que Oriana Fallaci diga o que pensa, apesar de, na sua essência, estar a negar aquilo que distingue, para melhor, o Ocidente das outras civilizações: o relativismo.

Não se assustem aqueles que aplaudiram Bento XVI nos seus últimos dias enquanto cardeal. O relativismo não deve ser levado ao absurdo. Não deve ser absolutizado, digamos assim. O relativismo está tão na moda que qualquer convicção é considerada medieval, que qualquer pessoa religiosa é considerada retrógrada, que qualquer ideia mais forte é considerada fundamentalismo. O relativismo de que falo é uma questão de forma e não de conteúdo. Oriana Fallaci tem direito a não gostar do Corão (também não gosto do Corão, no sentido em que não sou muçulmano). Tem direito a recusá-lo. Mas não tem direito a erigi-lo como inimigo público número um e a declarar que o Ocidente é incompatível com o mesmo. Por esse caminho, daqui pouco Oriana Fallaci dirá que só é ocidental quem for da religião dela, do partido dela, etc. E partirá em Guerra Santa. O relativismo de que falo é mais do tipo "sei que estás errado, mas podemos viver juntos" do que do tipo "nem temos nem podemos ter razão em coisa nenhuma". (E, entenda-se, essa é uma atitude tão aceitável como qualquer outra, mas não pode ser, como nenhuma outra, absolutizada em termos sociais. Temos de viver com ela, mas não apenas com ela.)

É perfeitamente possível ser muçulmano e viver no Ocidente e não pôr em perigo o Ocidente. Alguns muçulmanos ocidentais explodiram metros em Londres? Também há seitas fundamentalistas americanas que mataram dezenas de pessoas. O problema não está na religião particular, mas no uso que se faz da religião: o problema são os crimes em si e o fundamentalismo perigoso que os instiga. O cerne do fundamentalismo pode ser o Corão, a Bíblia, o Comunismo, o Fascismo, o álcool, a droga, a televisão, a literatura, o sexo, etc. Tudo o que existe na vida. Ou seja, tudo o que alguns transformam no centro absoluto da sua vida. Mas também podemos ser fundamentalistas nas ideias — também temos esse direito — sem andar por aí a matar por causa delas. Por razões diversas, neste momento o fundamentalismo islâmico é o perigo que espreita nas nossas sociedades. O fundamentalismo político de esquerda espalhou bombas nos finais do século XIX (os anarquistas). O fundamentalismo político de direita espalhou o terror em meados do século XX (os fascistas). O fundamentalismo religioso cristão espalhou o terror durante as Cruzadas. O fundamentalismo religioso islâmico espalha o terror pelo mundo neste momento. Temos de recusar todas as ideologias de esquerda e de direita e todas as religiões só porque, no passado ou no presente, alguém as aproveitou para matar outras pessoas? Não: temos de respeitá-las enquanto opções de cada um (um dos pilares do Ocidente), mesmo nas suas versões fundamentalistas. Mas temos também de perseguir sem hesitações todo o tipo de movimentos que atentem contra o modo de vida do Ocidente. Temos de perseguir todo o tipo de fanatismos violentos.

Ora, na minha opinião, a ideia de que todo o Islão deve ser combatido é fanatismo. Isto equivale a dizer que devemos combater Oriana Fallaci tal como combatemos Bin Laden? É evidente que não! Como disse antes, Oriana Fallaci tem direito a ser fundamentalista. Tal como o tem Bin Laden. Mas Bin Laden deve ser combatido porque é um fanático perigoso, que organiza ataques a pessoas inocentes e está a tentar destruir o Ocidente. Se, por absurdo, alguém se lembrasse de organizar uma organização terrorista que combatesse o Islão (como já aconteceu), também deveria ser combatido. Isto é ser claro: combatemos todos aqueles que nos atacarem. A superioridade do Ocidente passa por não impor as suas ideias à força. (Infelizmente, também em relação ao Ocidente, nem sempre é assim.)

Oriana Fallaci tem direito à sua opinião. Não é criminosa por isso. Tentar criminalizar o Islão como ela o faz também está errado. Os radicais islâmicos abominam o Ocidente pelas mesmas razões que muitos fundamentalistas cristãos: pela permissividade sexual, pela liberdade de expressão e de vida, pelo relativismo. No entanto, não andamos a dizer que esses fundamentalistas cristãos são o nosso inimigo, tal como também não podemos dizer que o Islão é o nosso inimigo.

Os nossos inimigos são Bin Laden, Al Zarqawi e os seus seguidores. Aqueles que atentam contra nós. Não é nenhuma ideia nem religião em particular. As palavras de Oriana Fallaci são mel aos ouvidos dos radicais islâmicos: puxam-nos para o seu nível de primitivismo e fundamentalismo radical, completamente contrário à modo de vida ocidental. Fallaci demonstra uma linha de pensamento semelhante à dos radicais de todos os géneros. Se todos fôssemos como ela, Bin Laden ficaria agradado. Teria um parceiro ideal para a guerra total. Seríamos o outro lado da Guerra Santa, pura e criadora de mártires, idealizada por Bin Laden.

Eu escolho não ser fundamentalista (entre muitas outras escolhas). Sei que a sociedade respeita a minha opção. Oriana Fallaci escolhe ser fundamentalista. Bin Laden é fundamentalista e mata pessoas. Se quiser dividir a sociedade assim, poderia dizer que é necessário atacar um e outro, porque ambos são meus inimigos. Ora, é nesse erro que cai Fallaci. Escolhe não ser islâmica. Bin Laden é islâmico e mata pessoas. Por isso, conclui a jornalista, é preciso combater o Islamismo. Errado: é preciso combater quem nos combate, quem nos quer matar, quem nos quer retirar a liberdade de escolher as nossas ideias e os nossos próprios fundamentalismos. Não podemos escolher os inimigos de morte pelas ideias, mas pelas acções dos mesmos: os inimigos aparecem quando alguém nos ataca. Espero que Bin Laden seja encontrado não porque é muçulmano, fundamentalista, isto ou aquilo, mas porque ele me quer atacar a mim e à minha sociedade (as razões por que o quer fazer são-me indiferentes).

Para mim, o fundamentalismo islâmico é tão criticável como o tipo de fundamentalismo demonstrado por Oriana Fallaci (e como todo o tipo de fundamentalismo, mesmo aquele fundamentalismo cool, que o há) — mas criticável ao nível das ideias (e foi isso que fiz neste post, criticar as ideias da jornalista e de todos os radicais). Combater como inimigo de morte só devemos combater quem nos quer retirar a liberdade e a vida. Portanto, o nosso primeiro inimigo é Bin Laden e Al Zarqawi, não o Corão.

Quer isto dizer que o conteúdo do Corão não pode ser criticado? Claro que pode. Na realidade, como defendem muitos intelectuais islâmicos, é necessário que o seja. O Corão, tal como a Bíblia, foi escrito, como disse, numa época onde o fundamentalismo perigoso era o pão nosso de cada dia. O Corão deve ser lido pelos muçulmanos e deve ser encontrada uma leitura que permita a paz e a convivência, tal como os cristãos fizeram, em grande medida, com a Bíblia (apesar de a mesma ser, tal como o Corão, violenta) e tal como, aliás, muitos muçulmanos fazem. O Corão, para quem não é islâmico, deve ser respeitado ou, pelo menos, tolerado. Se Oriana Fallaci conseguisse provar que todos os seguidores do Corão são perigosos, então sim poderia ter razão. Mas há pessoas para quem o Corão é um suporte de vida e um alento e que não me querem atacar. A partir desse momento, respeito o Islão. Para mais, elegê-lo inimigo público número um é alimentar a besta e impedir a integração dos muçulmanos que nos querem ajudar. É contraproducente. É errado.

Portanto, sei que Oriana Fallaci está errada e, ainda assim, não a ataco. É este o raciocínio em que se baseia a tolerância ocidental verdadeira (podemos ter ideias fortes sem atacar quem as não partilha). Espero que Fallaci sigo o mesmo caminho em relação aos muçulmanos, tal como espero que os mesmos façam connosco.

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