Negatividade

Às vezes encontramos tesouros onde menos os esperamos. Estava mesmo a terminar de ler um livro, muito interessante por si só, quando aparece esta nota de rodapé (os dois factos que a nota começa por referir não importam para o caso):

A esos dos hechos un filósofo podría añadir otro, menos circunstancial y quizá más profundo: la creciente capacidad de insatisfacción de los seres humanos, fruto paradójico de la creciente capacidad de las sociedades occidentales para satisfacer nuestras necesidades. “Cuando los progresos culturales son realmente un éxito y eliminan el mal, raramente despiertan entusiasmo —escribe Odo Marquard—. Más bien se dan por supuestos, y la atención se centra en los males que continúan existiendo. Así actúa la ley de la importancia creciente de las sobras: cuanta más negatividad desaparece de la realidad, más irrita la negatividad que queda, justamente porque disminuye.” — Javier Cercas,Anatomía de un instante (2009), p. 432. (negrito meu)
Ora, pensem lá: não será isso mesmo que leva a que o mundo esteja cada vez melhor mas a indignação pelo estado do mundo seja cada vez maior? O paradoxo, de que pouca gente se dá conta, também se verifica quando alguém diz: “isto não devia acontecer em pleno século XXI” como prova de que as coisas estão cada vez piores. Ora bem, esta frase implica que o século XXI é, de alguma forma, melhor do que os anteriores (se não o fosse, não teria lógica indignarmo-nos por “isto” acontecer neste século em particular). E, no entanto, a pessoa está a tentar provar que estamos cada vez pior…

Seja como for, concentrarmo-nos no que é negativo não deixa de ser uma boa forma de irmos acabando com o que é, de facto, negativo. O problema surge quando nos concentramos tanto no negativo que esquecemos o que já temos e acabamos por ficar desesperados, sem forças para continuar e arriscamo-nos a aceitar soluções tão fortes ou radicais que pomos em causa o muito de bom que se conseguiu.

Em Portugal o problema nem é que nos concentremos demasiado no que há de negativo (que pode ser muito, não é esse o caso), mas que achemos tudo, à partida, mau, perdendo a capacidade de discernimento. Achar que tudo é mau acaba por ser o mesmo de achar que tudo é bom. Não saímos do mesmo lugar nem fazemos o esforço de perceber as coisas. Ou andamos desesperados “no pior país do mundo” ou encantados com “o melhor país do mundo”. Como está tudo no mesmo saco, ninguém repara quando alguém faz alguma coisa de realmente bom. Depois, basta alguém não concordar com o nosso critério sobre o que está bem e mal para termos mais uma prova de que tudo está mal…

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