Miopia Mental

Um português conhece bem as várias regiões do país, os diferentes sotaques e tradições, aquilo que se diz de cada região e até de cada cidade. Portugal é uma realidade complexa. Já no que toca a qualquer outro país, um português tem, em geral, uma ideia simplificada, não consegue distinguir as várias regiões, não conhece as tensões internas e vê tudo de forma simplificada.

Este padrão aplica-se a tudo. Vemos os outros de forma simplificada e difusa, mas aparentemente clara, e não só no que toca a regiões e países – as pessoas de outros partidos, as pessoas com outros interesses, outros sotaques ou hábitos linguísticos ou com outras origens sociais, todos são vistos de forma caricatural. Uma pessoa que não gosta de ler põe todos os leitores no mesmo saco «pseudo-intelectual», um intelectual põe quem não lê no mesmo saco de «ignorantes» onde também coloca os visitantes dos centros comerciais, algumas famílias da Grande Lisboa imaginam miséria à mínima menção de «o comer», os velhos-ricos conhecem bem o estilo fútil do «novo-rico», uma pessoa do interior coloca todos os lisboetas no mesmo saco e imagina-os a tratar os filhos por «você», num festival de snobismo.

Este fenómeno é uma espécie de miopia mental: o que está perto é bem visível e complexo, o que está longe é visto de forma desfocada e simplista. Não há grande volta a dar: nunca poderemos ter uma visão tão completa do mundo dos outros como temos do nosso. O que podemos fazer é não dar demasiado crédito à nossa visão necessariamente incompleta dos outros. Afinal, é fácil considerar sólidas as nossas certezas sobre os outros exactamente porque parecem simples e claras – no fundo, confundimos miopia com lucidez. Se é possível definir um espanhol em poucas palavras, porque não há-de um português confiar nessa definição aparentemente tão eficaz?

O que fazer? Sabendo das nossas limitações, podemos tentar contrariar um pouco esta miopia. Podemos recusar grandes conclusões com base em traços vagos que mais não são do que a visão míope de quem não sabe que é míope. Podemos arriscar e fazer pequenas incursões no mundo dos outros: ouvir com atenção, ver duas vezes, contrariar as primeiras impressões ou as conclusões arreigadas – e isto vale para países, regiões, profissões, partidos, estilos de vida e tudo o mais. Se temos a impressão que um determinado povo é antipático, podemos tentar encontrar exemplos contrários. Se achamos que as pessoas de determinado partido são a incarnação de todos os males do país, podemos tentar conversar um pouco mais ou ler textos em que essas pessoas expõem as suas péssimas ideias. Se achamos que a gastronomia de determinado país não presta, podemos tentar começar de novo, experimentar novos restaurantes, sair do que já tentámos. Mal não faz e sempre vamos descobrindo coisas novas e abanando um pouco as nossas certezas para ver se são sólidas. 

Pode acontecer que nos aconteça como a um míope que experimenta uns óculos e descobre que antes não via nada; ou, talvez de forma mais realista, podemos continuar sem os óculos, mas chegamos à conclusão de que somos míopes e começamos a aproximar os olhos das coisas para as ver com mais atenção. Continuaremos a ter uma visão incompleta do mundo e a ter as nossas opiniões – mas estaremos agora um pouco menos seguros de nós, o que é o primeiro passo para não andarmos convencidos que o mundo é só aquilo que nos parece quando olhamos para os outros de forma descuidada.

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