Por que razão não gostam os ingleses da União Europeia?

História de Portugal em três ou quatro linhas

Se pedirmos a um português qualquer para explicar a história de Portugal em poucas palavras, o mais provável é ouvirmos algo do género: Fomos invadidos pelos espanhóis muitas vezes, conseguimos vencê-los quase todas as vezes, nem que fosse à pazada, fizemos os Descobrimentos e depois entrámos em decadência.

O século XIX é ignorado por, enfim, ignorância, o século XX é ignorado porque está demasiado presente e tudo é simplificado num apanhado geral. É normalíssimo e todos os países fazem isto: tirando os historiadores (profissionais e amadores), a grande maioria da população olha para a história do seu país como um enredo simplíssimo, fácil de entender, e que, aliás, é bastante homogéneo entre as várias versões que encontramos na boca de diferentes contadores. Este enredo é feito de ideias vagas sobre o próprio país, sobre a história, sobre a sua relação com os vizinhos. São ideias muito pouco estruturadas, que se resumem a poucas frases, porque se fossem mais complexas não estariam presentes de forma tão uniforme em todo o povo. Cada um de nós tem ideias mais desenvolvidas sobre o próprio país, mas há sempre um núcleo que todos partilhados — e não é preciso que todos concordemos com a tal história em três ou quatro linhas para que a mesma seja partilhada por todos: um português que diga que os Descobrimentos não foram assim tão importantes sabe perfeitamente que está a ir contra o que a maioria dos outros portugueses pensa.

O amor inglês pela União Europeia

Há umas semanas, depois de conversar com o meu irmão Diogo, que está a viver em Inglaterra desde o ano passado e veio cá ao aniversário da minha mãe e me perguntou a opinião sobre a razão por que os ingleses gostam tão pouco da União Europeia, pus-me a pensar se por trás dessa falta de amor pela UE não estaria a tal «história simplificada» que todos os povos têm. Afinal, os outros europeus também não morrem de amores pela UE, mas os tablóides do Continente não fazem manchetes com ataques a Bruxelas, pelo menos com a regularidade com que os ingleses o fazem (com tanta regularidade que a Comissão Europeia tem um site só para desmentir a imprensa britânica no que toca à UE).

Obviamente, como em tudo, há muitas explicações e até opiniões diferentes sobre o fenómeno. Por exemplo, é possível argumentar que os ingleses gostam tanto (ou tão pouco) da UE como qualquer outro europeu, mas os seus jornais são mais «sinceros», digamos assim, ou seja, transmitem de forma mais fidedigna o que os ingleses «comuns» pensam. Não posso analisar todas as nuances do tema e por isso vou dar de barato que os ingleses, de facto, gostam menos da União Europeia do que os outros povos. Dito isto, penso que é possível perceber o que está por trás de tal cepticismo: a tal «história simplificada» que cada inglês tem dentro da cabeça.

A ilha apetitosa

Ora, qual será a tal «História Simplificada de Inglaterra»? Como falo de certas ideias gerais, que estão inscritas na visão do mundo dos povos através de conversas, histórias, opiniões, anedotas, é difícil chegar a conclusões sólidas porque esta história simplificada não se diz, sabe-se. Se para um português é fácil perceber qual a ideia que os portugueses têm da sua história, tentar discernir qual a «história simplificada» doutro povo é difícil ou quase impossível. Mas, de certa forma, quando tentamos nos esforçamos para perceber que história é essa, como estamos de fora, vemo-la com maior nitidez, tal como vemos com maior nitidez o que é diferente quando visitamos um país estrangeiro. Ou seja, tal como para um inglês a ideia muito portuguesa de que já fomos os donos do mundo e para um espanhol a ideia de que andámos a ser invadidos por Espanha dia sim dia não parecem estranhas (um inglês e um espanhol pouco ouviram falar de Portugal nas aulas de história e pouco falam de Portugal nas suas conversas diárias: onde carga de água entramos nós na sua visão do mundo?) — para um português, certas ideias que um inglês tem sobre o seu país, uma vez descobertas, tornam-se salientes, porque têm a estranheza do novo ou do improvável (no fundo, todas estas «histórias simplificadas» são extremamente improváveis, se pensarmos bem; só quando estamos imersos nelas parecem tão naturais como o vento).

Para começar, há algo que é óbvio para um inglês: a Inglaterra é uma ilha — um escocês e um galês não concordariam, porque a Inglaterra partilha uma ilha, mas não é, ela própria, uma ilha, mas para o caso o que importa são as impressões. É uma ilha que, por ser uma ilha, está fisicamente fora do continente europeu. Além de ser uma ilha é, acima de tudo, uma ilha apetecível («um outro Éden», Shakespeare, Richard II).

Inglaterra é uma espécie de pérola, sossegada e majestosa, longe do ruído e confusão dum continente cheio de guerras, revoluções e confusões. Um pouco à parte da Europa, os ingleses vêem a sua história como um percurso de pequenos passos, sem grandes convulsões e quase sem revoluções ou guerras (este é, sem dúvida, o ponto em que a «história simplificada de Inglaterra» mais se afasta da «história real de Inglaterra»).

Sendo uma ilha apetecível, vários povos tentaram invadi-la, de várias formas, ao longo da história. Os ingleses, para manter a sua individualidade (aqui está outro ponto importante: os ingleses acham-se orgulhosamente diferentes), sempre se defenderam e sempre conseguiram evitar todas e quaisquer invasões (desde a última, em 1066, se ignorarmos a Glorious Revolution, que pode ser interpretada como uma invasão holandesa).

As invasões constantes

Ora, perante isto, um português sente a tal estranheza que um estrangeiro sente perante as ideias de outros povos sobre si mesmos. Primeiro, o que terá a Inglaterra de tão «apetecível»? Para um latino, a Inglaterra está longe de ser um objecto de desejo, com tão pouco sol. Depois, que raio de invasões foram essas, das quais ninguém ouviu falar?

Estas invasões não são, propriamente, invasões físicas do território inglês, mas sim tentativas ou projectos: a Invencible Armada de Filipe II, o mais poderoso monarca do mundo, que foi derrotada pelos ingleses; o projecto europeu de Napoleão, que queria unir toda a Europa sob o domínio francês, e foi derrotado em Waterloo pelos ingleses; e, finalmente, os exércitos de Hitler, que também deveriam ter marchado por toda a Europa, incluindo Inglaterra, mas nunca conseguiram atravessar o Canal da Mancha. Houve ainda outras formas de invasão, na óptica dos ingleses: o controlo da Igreja Inglesa a partir de Roma acabou por ser visto como uma invasão e prontamente repelido; ou o casamento de Filipe II com Maria I de Inglaterra, que pôs em causa a independência de Inglaterra até Isabel I subir ao trono (a rainha sob a qual os ingleses venceram a Invencible Armada). Mesmo uma invasão real e bem sucedida (a invasão holandesa que levou ao trono Guilherme III e Maria II) acabou disfarçada na «história simplificada» como Glorious Revolution, a revolução que afastou de vez o catolicismo da coroa inglesa e institui a democracia em Inglaterra. Ou seja, quando de facto são invadidos, os ingleses não são invadidos, mas antes «libertados do jugo papista».

Nestas invasões, a história simplificada (simplificadíssima!) para os ingleses é: a Europa cai sempre às mãos dos projectos unificadores, pensados por tiranos, acaba sempre controlada pelos poderes perigosos que são a Espanha, a França, a Alemanha ou o Papado — e a Inglaterra é o último reduto, a pequena aldeia livre, o povo que, teimosamente, não é invadido, mantém-se democrático, monárquico, anglicano, anda pela esquerda, usa a libra e odeia profundamente tudo o que é «uniforme», «unificador» e «pan-europeu».

A ameaça de Bruxelas

Ora, se a Inglaterra é sempre o último reduto perante as vagas de uniformização e unificação europeias, onde é que isso a coloca perante a União Europeia? Todo o projecto europeu é visto através desta lupa: a UE é mais uma tentativa (pacífica, é certo) de unificar a Europa, de a uniformizar, de a colocar sob o domínio de um dos grandes países do Continente (a Alemanha, obviamente). Por isso, tudo o que vem de Bruxelas é uniformizador, unificador, uma ameaça à particularidade inglesa e, no extremo, uma afronta à democracia parlamentar e à soberania inglesas. Tudo o que Bruxelas faz é mau e especialmente revoltantes para um inglês são as histórias (verdadeiras ou falsas) sobre as tentativas dos eurocratas de formatar o que é tipicamente inglês (uma moeda única, um cartão de identidade, as unidades de medida, a forma das bananas, o tamanho dos preservativos, e por aí fora).

Em suma, os ingleses vêem-se como orgulhosos ilhéus, individualistas, democráticos, corajosos. Querem, segundo eles, viver como bem entenderem, sem imposições europeias. Por isso a UE é tão ameaçadora: é mais uma invasão, desta vez disfarçada e, por isso, especialmente perigosa. Estas ideias têm origem na tal história simplificada sobre o «último reduto».

Obviamente, esta história tem buracos por todos os lados. Claro que a Inglaterra não é uma ilha de paz no meio dum continente de guerra; claro que a Inglaterra é um dos poderes europeus e participou activamente na política e nas guerras europeias tanto quanto os outros países, claro que os ingleses não são assim tão diferentes dos outros europeus (ou são diferentes da mesma maneira). Tem buracos e é, em grande parte, enganadora, mas existe e tem impacto no dia-a-dia — e não deixa de ter, aqui e ali, algum fundo de verdade.

Nós e os outros

É com base nessa história simplificada que se criam os chamados «valores nacionais», as ideias sobre os outros povos e por aí fora. No nosso caso, a nossa imagem dos espanhóis deve muito à «História Simplificada de Portugal» que temos na cabeça. Até as nossas imagens dos ingleses devem muito a pequenas frustrações relacionadas com essa história: afinal, sem ingleses, não teríamos derrotado os espanhóis durante as tais invasões quinzenais por parte dos nossos vizinhos e ser ajudado por outro país é sempre uma ferida aberta no nosso orgulho — e os ingleses nem sempre se comportaram muito bem quando nos vinham ajudar.

Ou seja, ligadas à visão sobre si próprio, cada povo tem determinadas visões sobre os outros. Os ingleses vêem os outros europeus como facilmente conquistáveis pelos tiranos e um pouco, digamos assim, cobardes. Os portugueses vêem os ingleses como um pouco excêntricos e com a mania que são melhores do que os outros. No fundo, a Europa é um pouco como um recreio duma escola, em que cada um tem uma ideia sobre si próprio e pequenas histórias com os outros e o comportamento de cada um é influenciado por essas ideias e por essas histórias.

Podemos ver os ingleses como o miúdo ligeiramente excêntrico que acha que os outros andam a toque de caixa dos brigões da escola e que faz questão de estar um pouco à parte — e, já agora, de se dar bem com o irmão mais novo, que anda noutra escola e é mais famoso e popular, embora nesta escola seja um pouco mal visto. Claro que, no final de contas, andam todos na mesma turma e estão condenados a entender-se, mas o recreio é o sítio das brincadeiras e da imaginação — mas, brincadeira ou não, às vezes acabam mesmo todos à briga. O que vale é que, com esta história da União Europeia, a última briga já foi há mais de sessenta anos. O que não deixa de ser muito bom, tendo em conta que quando estes meninos brigam, o mundo costuma ir todo atrás.

[Em breve, conto colocar aqui alguma bibliografia sobre este assunto.]

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