Elogio das Cidades

Diz Renato Carmo, do Fuga para a Vitória: "O nível de concentração populacional em torno das grandes cidades é um dos maiores problemas do mundo. [...] Hoje, a cidade tornou-se um problema. O esvaziamento dos campos foi de tal ordem que se constituíram autênticos monstros urbanos quase ingovernáveis." Sem dúvida. A desertificação do interior é, sem dúvida, nefasta. Mas é um problema secundário. O maior problema do país é a falta de gente nas duas principais cidades. Senão, vejamos. Como diz o Renato, "Lisboa [e o Porto] afogou-se por completo na muralha suburbana que a circunda". Pois é exactamente essa fuga das cidades para os subúrbios que, aliada à imigração de gente do interior, não para as cidades, mas para esses mesmos subúrbios, criou esses monstros que são as áreas metropolitanas. O facto de à volta de Lisboa e do Porto habitarem muito mais pessoas do que nas próprias cidades é a causa de grande parte dos problemas de trânsito, poluição, stress. A vida dentro dos próprios concelhos de Lisboa e Porto é bem mais agradável: é possível viver perto do emprego, dos vários serviços, da beleza da cidade, do rio e do sossego das noites. Aqueles que vivem a poucos quilómetros do centro passam horas no trânsito, encaixotam-se em terras sem nome, estão longe do teatro, do cinema, das boas livrarias, de tudo isso e, acima de tudo, esvaziam Lisboa, tornando-a insegura. Que aconteceria se a população voltasse em massa para Lisboa? Se, por absurdo, a cidade voltasse a ter perto de um milhão de habitantes e não os parcos 500.000 que tem agora? O trânsito diminuiria drasticamente, era mais fácil garantir a segurança nocturna das ruas, passaria a haver massa crítica para tantos projectos culturais e urbanísticos de qualidade que ficam na gaveta, cada um viveria perto do emprego, com tempo e paciência para a sua própria vida todos os dias (com menos filas, mais tempo, mais escolhas). Pode parecer cor-de-rosa. Mas pensem um pouco. A outra solução: voltarmos todos para o interior. Quem conhece algumas cidades médias onde muito menos trânsito que Lisboa cria engarrafamentos comparáveis sabe que estaríamos todos a enfiarmo-nos num caldinho igual ou pior: as cidades do interior não estão preparadas para receber muita gente. (Se alguém tiver vida e paciência para ir viver para uma sossegada aldeia do interior, força.) Ora, se é assim, porque é que tanta gente (e conheço cada vez mais) insiste em fugir da cidade para se refugiar a poucos quilómetros? Primeiro, porque não podem fugir a sério de Lisboa: precisam do emprego. Então, não podendo ir para muito longe, fogem para os subúrbios, onde a vida acaba por ser pior. Isto porque continuam a acreditar que a cidade é o problema e que a fuga, qualquer fuga, é a solução. Uma ilusão que nos está a sair muito cara a todos. Sejamos claros: o problema são as áreas metropolitanas. Em comparação, as cidades são ilhas de qualidade vida. É certo que há inúmeros locais muito bons para se viver a poucos quilómetros de Lisboa (e no interior do país, obviamente), mas a solução para muitos dos problemas da concentração humana é mais concentração: se metade do milhão e tal de pessoas que mora na linha de Sintra pudesse viver em Lisboa, teríamos muitos dos nossos problemas resolvidos. "Pudesse", repare-se. O problema, todos sabemos, é o preço das casas. Mas essa é outra história.

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