A Evolução e o Cardeal

Uma das coisas que tenho aprendido com os anos é que toda e qualquer questão é sempre mais complexa do que parece à primeira, segunda e terceira vistas. Também tenho aprendido que um dos maiores problemas de muitas pessoas é nunca chegarem a essa conclusão e habituarem-se a ler o mundo com lentes feitas de preconceitos invisíveis; este fenómeno é mais grave quanto mais convencidas estiverem essas pessoas de que as suas ideias são radicais, não preconceituosas e inteligentes.

Há que dizer que todos sofremos um pouco deste problema e, por isso, temos de aprender a pensar e a mastigar as coisas. Podemos nunca chegar a ter razão, mas devemos tentar ir além da facilidade e das opiniões feitas no momento.

Por exemplo, há umas semanas, um cardeal austríaco, Christoph Cardeal Schönberg, escreveu um artigo no New York Times em que atacava aquilo que chama o “dogma neo-darwinista”. Tais declarações, num contexto norte-americano, foram interpretadas como uma defesa do Criacionismo. Alguns católicos, segundo a revista Time, reclamaram perante aquilo que consideram um retrocesso em relação à declaração de João Paulo II, em 1996, na qual o Papa reconheceu a validade da Teoria da Evolução, afirmando-a “mais do que uma hipótese”. Mas, claro, não só os católicos: muitos analistas europeus apressaram-se a condenar esta “recaída medieval” da Igreja Católica.

A Igreja Católica, muito por culpa sua, é hoje associada por largos sectores da sociedade às ideias retrógradas, à desconfiança em relação à Ciência, à ignorância. Esses comentadores e analistas rejubilaram perante declarações cardinalícias tão “límpidas” — estava lá tudo o que mais desejavam para poderem criticar: o criacionismo como prova de ignorância, a tendência anti-científica da Igreja, o dogmatismo, o medievalismo, etc. Este cardeal seria a prova viva que afinal a Igreja Católica não mudou assim tanto (além de, como amigo de Ratzinger, vir mostrar que este Papa é exactamente aquilo que se esperava dele).

Desde criança que aprendi a Teoria da Evolução, nunca acreditei em nenhuma interpretação literal da Bíblia e desde sempre me rio do Criacionismo. Desde sempre tentei ter o espírito crítico e céptico próprio do pensamento científico, apesar de ter enveredado pela área das Letras (onde julgo faltar muito desse tipo de pensamento). Mas, perante as reacções ao artigo do cardeal, não pude deixar de pensar que muitos dos que o criticam estão a deixar-se influenciar por dogmatismos e preconceitos — qualquer texto com cheiro a catolicismo e crítica a teorias supostamente científicas é imediatamente catalogado como ataque dogmático da religião à ciência, equivalente a um auto-de-fé ou à condenação de Galileu.

Na realidade, o que o cardeal critica são as teorias neo-darwinistas que, como qualquer cientista sabe, não equivalem ao darwinismo nem à Teoria da Evolução, mas consistem sim na sua aplicação a áreas do conhecimento para lá da Biologia, aplicação essa muitas vezes abusiva. O neo-darwinismo é hoje uma ideologia que alguns utilizam para justificar o capitalismo selvagem e a lei do mais forte e para tentar validar uma concepção do ser humano de cariz fascizante ou neo-nazi (o racismo pseudo-científico apoia-se, muitas vezes, em argumentos neo-darwinistas).

O cardeal, quando questionado pela revista Time, defendeu-se afirmando: “Acredito em dogmas de fé, mas não em dogmas científicos.” Para muitos, isto é um condenável ataque à Ciência e ao saudável pensamento científico. No entanto, qualquer cientista poderia subscrever a frase: os dogmas de fé são, por definição, não científicos — acreditamos ou não acreditamos e a Ciência não se imiscui no assunto (não lhe interessa). Os dogmas científicos, simplesmente, não podem existir. O método científico (tal como delineado por Karl Popper) impõe à Ciência o critério da falsibilidade — só é científica qualquer teoria que possa ser, através de testes científicos, testada e, eventualmente, falsificada (e, assim, tornar-se base para teorias mais amplas e mais precisas). Uma teoria que não possa ser falsificada (que não possa, portanto, ser testada) não é científica. Este aspecto do método científico pode ser difícil de compreender mesmo para quem se assume como defensor das verdades científicas, mas é a base do pensamento científico do século XX e XXI e a razão da explosão das descobertas e do desenvolvimento científico. A Teoria da Evolução pode ser testada e, eventualmente, falsificada (o que significa que pode surgir uma teoria que a ultrapasse, ao explicar de forma mais correcta e precisa os fenómenos previstos pela Teoria da Evolução). Tal não significa, muito pelo contrário, aceitar o Criacionismo (essa teoria foi invalidade há muito tempo), mas também não significa aceitar sem reservas o neo-darwinismo — que, aliás, nem sempre é científico, por ser uma ideologia não falsificável e não uma verdadeira teoria científica.

Tal não implica que não se possa defender o neo-darwinismo e que não haja neo-darwinistas com ideias cientificamente válidas. Mas, como em relação a qualquer teoria científica, é cientificamente válido criticar o neo-darwinismo como o Cardeal Schönberg fez e dizer que a Teoria da Evolução não é uma explicação fechada e concluída do mundo —é assim que a Ciência funciona.

É evidente que o cardeal critica o neo-darwinismo por acreditar na “intenção divina” da Evolução. Não estou a defender essa hipótese, embora, sendo um dogma religioso, não seja criticável em termos científicos. Provavelmente, o cardeal não tem razão quando diz que “a evolução das espécies não é um processo incontrolado de variação arbitrária e selecção natural" (ou seja, o cardeal acredita que Deus controla conscientemente a Evolução e tem direito de acreditar em tal dogma, desde que não o julgue científico). Mas o Cardeal Schönberg sabe que o Criacionismo que actualmente grassa nos E.U.A. é um produto da ignorância ou do mais puro e perigoso integralismo cristão. Ora, recusar o Criacionismo não significa que se aceite as teorias neo-darwinianas como explicação única da sociedade e do mundo em que vivemos ou que as mesmas nos sejam impostas como “verdades científicas” (coisa que não existe). Afinal, o darwinismo não é uma ideologia política, como os pós-darwinistas nos querem fazer crer.

Afirmar que a Bíblia (num dos seus dois relatos contraditórios) inclui uma explicação científica da criação do mundo é ignorância científica e dogmatismo perigoso. Mas pensar que tudo o que um cardeal diga em relação à Teoria da Evolução é sempre dogmatismo (a não ser que consista numa completa aceitação de tudo o que os neo-darwinistas radicais defendem) não deixa de ser também prova de ignorância científica e de integralismo dogmático. Darwin, provavelmente, estaria mais à vontade a conversar com o Cardeal Schönberg do que com muitos neo-darwinistas fervorosos.

O mundo é complicado. Nem tudo é a preto e branco e nem sempre um cardeal é mau cientista.

(Agora não se entenda tudo ao contrário e se pense que recuso tudo o que seja neo-darwiniano. Afinal, esse nome é dado também aos desenvolvimentos mais recentes no âmbito da biologia e da Teoria da Evolução e tais desenvolvimentos — perfeitamente legítimos — não estão abrangidos pela minha crítica ao extravasamento das teorias darwinianas para âmbitos nos quais são, decididamente, perigosas e criticáveis — como no caso da defesa do racismo ou de concepções fascistas da sociedade. Como em tudo, o segredo está em destrinçar.)

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